As cerejas vermelhas estavam sobre a mesa, frescas, belas e ácidas. O meu olhar estava ainda plasmado no horizonte que tinha abarcado momentos antes sobre a imponente cerejeira. Saía cedo, refém de uma intensidade louca de subir à árvore que engrandecia o meu horizonte e me devolvia uma certa felicidade. Os Melros enlouquecidos pela generosidade da natureza esvoaçavam num frenesim estonteante fazendo voos rasantes à minha inusitada felicidade de principio de manhã de Junho. Fazia 14 anos e nesse dia estava preste a desmaiar pela primeira vez na minha vida.
A frescura da manhã rejuvenescia um cérebro jovem e algo idealista. Imaginava-me com 32 anos, a viver em todos os lugares do mundo onde existissem cerejeiras imponentes, e onde a frescura da manhã continuasse a ser um tónico revigorante para os sentidos diletantes de quem simplesmente sobe uma cerejeira imponente e se sente feliz.Acreditava já, que as coisas simples sempre seriam um lugar de encontros e igualmente de desesperos vários.
Acordei a meio da viagem, a caminho do hospital, alguém me dava palmadas na cara e dizia: - acorda, acorda... lentamente devolvido à realidade senti a dor forte que me esfacelou todo o lado esquerdo do corpo. No hospital tudo me pareceu simpático, o médico, as enfermeiras roliças, as simpatias a que estava pouco habituado.
Passei o fim do ano lectivo, no lugar alto em que vivia a curar as mazelas de um atropelamento, e a olhar os meus colegas de escola a brincar no recreio ou, a adivinhá-los nas aulas chatas e traumatizantes de um certo mau professor de português a quem certamente não devo este meu gosto pelas letras. O Gonçalves esse, continuava como sempre, a correr desalmado pelo relvado de ervas daninhas com uma bola - nós chamávamos-lhe râguebi. Atrás, lá vinham os colegas de turma esbaforidos e a tentar rasteirar o imperturbável rapazola, por quem ainda hoje, passados 25 anos nutro uma enorme simpatia e amizade.
Hoje lembrei um daqueles acontecimentos de muitos anos e que fazem parte da minha construção existencial, sendo para isso apenas necessário, que sobre a mesa estivessem umas cerejas frescas, belas e ácidas. Enfim... coisas simples.

foto: António Manuel Silva
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