
Certamente muitos já terão visto por aí nas bancas a revista Periférica, da qual aliás eu sou assinante desde o primeiro dia. Primeiro por solidariedade regional e depois por me parecer um “pontapé” bem assente na interioridade onde nada parece acontecer, mas onde ao mesmo tempo também tudo acontece num ambiente certamente mais saudável (refiro-me literalmente ao ambiente) do que na urbanidade cosmopolita e “avançada”.
Desta revista se pode dizer que é para ler, o caracter miudinho e o texto denso afasta qualquer leitor apressado. Pode ainda dizer-se que tem um grafismo à altura. Quem a vê pela primeira vez dificilmente dirá que esta é escrita, produzida e reproduzida em pleno Trás-os-Montes (tal é a visão que se tem do interior). O único elemento delator da sua interioridade talvez seja mesmo a publicidade de página inteira que muitas vezes pelo seu grafismo “pitoresco” mais parece um sarcasmo da irreverente revista do que algo para levar a sério. Mas claro, estes projectos têm custos.
No entanto, e apesar de tudo que foi dito, tenho com a “Periférica” uma relação de amor/ódio.
É uma revista do interior que sistematicamente pisca o olho à urbanidade cúmplice, vejam-se as acções de lançamento realizadas em lugares da moda, na capital. Até aqui, tudo bem. Pior é quando por vezes os textos roçam a erudição hermética e afectada, a começar nos editoriais, que são escritos por quem realmente não acredita no interior. Francamente não sei como me relacionar com este facto, já que também eu próprio apesar de ser e viver no interior, tenho sob muitos aspectos uma grande dificuldade em me relacionar com ele. Mas que não gosto nada, lá isso não gosto.
É uma revista do interior, que no fundo o despreza e o minimiza e onde o ser-se construtivo ou até didáctico não tem espaço.
Francamente penso que esta revista, do interior, só tem mesmo o nome da aldeia onde é produzida (Vilarelho – Vila Pouca de Aguiar) e a ficha técnica, já que o seu público privilegiado e mesmo assim minoritário, é urbano, não havendo nela nada, ou quase nada, que reflicta a interioridade, à excepção, claro, da publicidade!
2 comentários:
Caro Paralelo 36,
Li com interesse o post que escreveu sobre a Periférica e resolvi comentá-lo.
As suas observações sobre a revista de que é assinante são quase todas certeiras, embora ponha em algumas delas uma certa carga pejorativa que nos faz discordar. Há, ainda, uma passagem do seu post errada: quando diz «É uma revista do interior, que no fundo o despreza e minimiza e onde o ser-se construtivo ou até didáctico não tem espaço».
Deixe-me contextualizar um pouco a relação da revista com o «interior».
Como talvez conheça, a Periférica sucede a uma publicação (o Eito Fora) inteiramente regional na distribuição e no âmbito editorial, publicação essa que cometeu suicídio, devida e antecipadamente anunciado, ao fim de quatro anos de publicação ininterrupta. Finda essa aventura transmontana, a redacção do Eito Fora, gente circunstancialmente nascida, a residir e a trabalhar em Trás-os-Montes, resolveu criar uma revista literária e artística de âmbito nacional — sem o incómodo de mudar a residência para terras onde estas publicações são habituais. E foi esta a originalidade maior da Periférica. Quer do ponto de vista do «centro» — que, com algum espanto, viu entrar no campeonato uma revista das berças —, quer do ponto de vista do «interior» — que descobre em alguns dos seus veleidades, digamos, pouco vulgares.
A Periférica herdou várias características do Eito Fora — mas nenhum contrato com o «interior». Nem com qualquer outra geografia do país. Não se arvorou em representante no exterior de nenhum naco de território mais a norte ou a leste. Deixou de lhe interessar, em termos editoriais, a problemática de uma região específica. Dirigiu-se, somente, a indivíduos leitores, sem olhar para o mapa. (Talvez seja aqui curioso referir que a maioria dos leitores de facto do Eito Fora na sua fase adulta não eram transmontanos.)
A Periférica pisca, então, «sistematicamente», «o olho à urbanidade cúmplice» e a todos os cúmplices potenciais, alguns, enraizados no interior. Fruto dos convites que teve, realizou até à data mais lançamentos na «capital» do que em qualquer outro lado. Mas teve lançamentos em Pedras Salgadas, em Vila Pouca de Aguiar, em Leiria, em Aveiro e no Porto. Uns com mais visibilidade, outros com menos — de acordo com o interesse manifestado pela comunicação social de cada sítio.
O público da Periférica é maioritariamente urbano. Mas não nos cabem responsabilidades nisso — o interesse pela literatura e pelas artes não tem qualquer relação com a proveniência geográfica, nem o Marão o limita. Sempre acreditei nisto, no entanto aceito provas do contrário. Mas não diria que nada há na Periférica que reflicta a «interioridade». Porque me recuso a ver a «interioridade» como um espaço formatado num retrato bucólico ou miserabilista, alheio à literatura e às artes. Crítico confesso e de longa data da apatia transmontana, não me atreveria, ainda assim, a conceber a «interioridade» como um espaço meramente rural, exclusivamente vocacionado para tradições simplórias, a viver com a simplicidade dos indigentes.
Claro que se estiver a usar «interioridade» como sinónimo exclusivo de espaço físico, de identidade regional, nesse caso sim, a Periférica não reflecte o espaço físico de Trás-os-Montes. Intencionalmente. Mas só porque não reflecte nenhum espaço físico específico. Nem vejo, honestamente, por que o deveria fazer.
Talvez o assinante lamente que não haja mais Trás-os-Montes na revista. (Quanto a não haver mais Periférica em Trás-os-Montes, ilibar-nos-á, certamente, dessa culpa…) Mas que Trás-os-Montes? Não é retórica esta pergunta.
Repare: a Periférica despreza a imbecilidade, a boçalidade, a apatia — não despreza Trás-os-Montes, como há-de estar claro. Nem o minimiza, acredite. Simplesmente, a Periférica também não está interessada em maximizar Trás-os-Montes. Nem por solidariedade regional (o que equivaleria a um inútil paternalismo), nem por qualquer outro sentimento igualmente vazio e igualmente desculpabilizador.
Nós gostaríamos de acreditar que a simples existência de uma revista como a Periférica no «interior» era suficientemente didáctica e construtiva — mas sempre fomos afectados de soberba: sabemos que o «interior» na sua maior parte não partilha da nossa ideia.
Felizmente, Trás-os-Montes tem bolsas que teimam em fugir ao retrato ruralista e obtuso que os transmontanos gostam e teimam em se conceder. Só que, para mal dos regionalismos, essas bolsas, com naturalidade, remetem a geografia para segundo plano, o lugar que lhe é próprio.
Já agora, o Paralelo 36, com a uma boa escrita, é ele próprio um exemplo de urbanidade surpreendente no «interior».
Grato pela paciência para este longo comentário,
Rui Ângelo Araújo
Caro Rui Ângelo,
Antes de mais quero manifestar a minha mais sincera admiração pela defesa clarificadora e justificação conceptual da revista de que é director.
As questões colocadas são para mim de uma importância quase assustadora tal é a importância que esta problemática tem na minha própria vida e tais são as dúvidas que há tanto tempo me perseguem. Vou passar algum tempo a pensar no assunto e mais tarde em forma de post vou lançar as minhas conclusões, mais para me entender a mim próprio do que para lhe fazer entender o que quer que seja, já que o seu comentário é por demais claro no que se refere ao posicionamento da Periférica relativamente à tal questão do "interior".
Mais uma vez o meu muito obrigado pelo comentário e sobretudo por me obrigar a pensar.
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