22 fevereiro 2009

A vida secreta de uma toupeira VI

Sempre me fascinaram os marinheiros, sobretudo aqueles que aportam como se pudessem ficar para sempre. Aqueles desenraizados que parecem poder construir a felicidade em qualquer porto do mundo. Daqueles que têm um pensamento bom, limpo e discreto.
Entretanto numa colina sobranceira, eu olho para ti e para dentro de mim próprio sem que me reconheça, olho-me e espio-me como se de outro se tratasse, olho-me como se fosse uma casa cheia de memórias antigas e difusas.
Olho-me como se a casa estivesse desarrumada, os caixotes espalhados e talvez um lençol a cobrir um velho sofá de couro. A luz que me cega entra difusa pela janela revelando o vetusto soalho onde tu projectas a esguia silhueta de fim de tarde. As nuvens adensam-se no horizonte, a terceira de brahms toca na rádio. Eu aqui a olhar para mim como se fosse uma casa desabitada, quando lá ao fundo existe um porto de felicidade e de transformação onde alguém pensa ficar para sempre.
Estar aqui é como querer pertencer a outro tempo da forma mais desencontrada possível. Estar aqui é ser qualquer coisa de intermédio, é não existir em mim... é uma espécie de nada... é um desencontro com tudo.
Enquanto uns chegam eu penso partir num cargueiro transcontinental, chafurdar noutra terra, noutro jardim e noutro delírio, noutro Eu.
Enquanto me passavam pela cabeça estes pensamentos vadios olhava para ti a construíres a vida com as mãos e entendi, que tal como eu, também estavas próxima da terra e deste lugar sem saída.
Perguntaste o que faria lá mais para o fim da viagem e eu só pude responder, que se algum dia te enterrasse seria no meu jardim.

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