30 janeiro 2009

A vida secreta de uma toupeira V

Olhava o mundo como quem fode, com a mesma intensidade, o mesmo ritmo e o desvario das órbitas baças. Queria provar tudo rápido e sem juízo de valor. Estava para o mundo como o chocolate negro para o paladar, amargo, torrado e forte. Deslizava pelas coisas do mundo como se as visse pela primeira vez e estivesse condenado a não as ver mais. As árvores despidas, como as mulheres garças e atrevidas fascinaram-no sempre.
Num dia já longínquo levantou os olhos quase por acaso quando ela se atravessou no seu caminho e o seu olhar acompanhou-a para sempre, com aquela fome de querer sempre.
Hoje, anos mais tarde quase nada mudou, continua a trabalhar o seu quintal de mimosas que florescem cheirosas e adocicadas todos os fevereiros e quando ela vem à janela - Manel, quando terminares a redra traz-me um ramo - ele sente que nada mudou com a mesma intensidade de sempre e como se fosse a última vez. Ele espera dela essa atitude de quem vem numa bonita manhã e olha nos olhos dele com a blusa ligeiramente desabotoada e lhe pede cor e lhe pede odor e lhe pede felicidade.
Estranhamente, hoje numa bela manhã de Fevereiro e no meio de um atordoante amarelo forte, ela não apareceu de blusa desabotoada. Deitou-se mesmo ali no centro do seu mundo colorido a olhar o céu e a rota dos aviões-pássaros, para contemplar a nuvem solitária e em acelerada metamorfose, sentindo claramente que já não existiam um no outro.
Terá sido um dia triste em que as lágrimas lhe tornavam baço o olhar forte.
Eu observei de longe o fio líquido que lhe saía dos olhos e tocava a terra solta, senti o amarelo forte que apenas podia imaginar e vi-o por fim beber de um trago um copo de lixívia que presumo apagaria para sempre o amor.

1 comentário:

Paulo Hasse Paixão disse...

Isso da lixívia é uma grande ideia e
a vida secreta da toupeira tem muito que se lhe diga.