Um mapa da Europa dobrado sobre a mesa, um isqueiro sem gás, e três ou quatro cigarros mal fumados num cinzeiro imundo testemunhavam segundo ele, uma maneira de estar no mundo - nas suas palavras, eram uma espécie de roteiro oficial da alma, de toda a liberdade do mundo e das coisas fundas em que tinha acreditado pela vida fora. A única verdadeira crença que se lhe conhecia lia-se neste mapa coçado e com imensas rugas, nos esquemas assinalados, nas notas de rodapé de um roteiro que durou anos – o meu mapa existencial, dizia. S. era um tipo quase sóbrio de sorriso manso e pose aristocrata. As calças de ganga coçadas, um certo desalinho no cabelo e uma indisfarçável altivez no olhar faziam-nos pensar na figura do velho aristocrata falido.
Enfim, um ser difuso e apenas reconhecível por tipos de uma certa geração e na qual por força de umas certas vivências eu me incluía. Gostava do seu desmazelo natural, da sua pose e de uma certa intocabilidade que todos lhe associavam. Era daqueles seres que não contam na parametrização comportamental que o nosso tempo parece exigir, ou que para ser mais crítico, de que o nosso tempo padece.
Imaginamo-lo numa sala de paredes humedecidas, talvez com um piano desafinado ao fundo da sala, um papel de parede retro com inúmeras recordações de viagens espalhadas pelas paredes, e claro, umas garrafas de vinho intragável na cave. A casa solarenga e decrépita no meio de vinhedos abandonados, uma entrada frondosa e descuidada, um portão imponente mas irremediavelmente partido e ferrugento, compunham o quadro visual e existencial deste viajante que viveu longos anos na Alemanha, falava fluentemente a língua de Goethe, e que tinha um fabuloso discurso relacional sobre tudo.
Quando olho para trás, vejo-o ainda ensonado às três da tarde, umas olheiras de três noites mal dormidas e um nevoeiro cerrado a envolver todo o espaço. Ouço-o ainda a assobiar a terceira de Brahms sob as laranjeiras molhadas e projectadas no branco difuso de uma tarde fria. Quando olho para trás, sinto com muita força aquela maneira cristalina que ele tinha de olhar o Douro, as suas misérias, mas sobretudo a sua intrínseca beleza. Gostava muito de passear de carro ao fim do dia pelas veredas mais improváveis e ouvir as cenas infantis de Schumann, entre outros clássicos de arrepiar as peles mais encardidas. E depois… aquela forma destemida de ser capaz de falar de tudo, aquela forma de olhar e reflectir o meio envolvente com uma especial acuidade, um olhar muito treinado e relacional que poderia ir da relação existente entre uma certa cor da paisagem e um nú de Schiele, ou sobre a relação entre um certa curva da montanha duriense e os montes vitícolas do Tokay, na Hungria. E depois, uma parte não menos importante dos fim de tarde… parar num restaurante isolado e vazio, pedir o vinho da casa e comer o que sobrou do meio-dia.
Por muitas razões, umas explicáveis e outras talvez não, estou consciente da influência fulcral que exerceu na minha própria forma de olhar as coisas e sobretudo no respeito que ganhei ao processo de conhecimento arvorado em princípios relacionais. Em todas as viagens que acabamos por fazer, fossem reais ou imaginárias, o seu discurso pautava-se sempre pela sua capacidade extraordinária de colocar em relação factos ou visões, por vezes, surpreendentes e outras tantas vezes até improváveis. Terá sido sem dúvida o professor mais sábio que algum dia tive e devo-lhe com toda a certeza, entre outras coisas, um olhar apaixonado por esta terra que habitamos – O Douro Vinhateiro, que não escolhi para nascer, mas que seguramente, para o bem e para o mal, escolhi para viver.
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