02 junho 2009

A vida secreta de uma toupeira IX

Durante anos vivi inquieto pela incapacidade de tomar decisões. Sempre que tentava decidir alguma coisa essencial, sentia a veia jugular estoirar no pescoço vermelho. Por vezes nasciam mesmo borbulhas, e, da boca só saíam palavras desconexas, como se em vez de as dizer apenas as estivesse a vomitar. Apertava os braços ao tronco suado como se algo fosse rebentar no interior e o grande temor não fosse a hemorragia interna, mas a projecção indiscriminada das vísceras.
Por detrás das paredes eram sempre os mesmos ruídos, os mesmos silêncios e desejos. Como não me reconhecia neste corpo em sobressalto, comecei a olhar-me, a espiar-me, a rasgar-me por dentro. Olhava-me para sair de um sufoco existencial. Quando alguém falava, ouvia-me a mim próprio e vociferava contra a vida pouco inspirada que levava. Dei-me conta de que chegara à meia vida sem nada de extraordinário para contar. Queria ser tudo, poderia até ser tudo, mas mantinha-me fiel a uma certa jovialidade que dificilmente manteria por muito mais tempo. Sentia-me afundar num marasmo, deixava-me emocionar por uma névoa. Olhei para o lado e as crianças com quem tinha vivido os primeiros anos de escola eram agora homens e mulheres autónomos e cheios de convicção. Eu não, eu no escuro de um certo tempo mantinha-me fiel ao indefinido, ao difuso e ao não saber bem como vai terminar o dia. Acreditava em tudo, aceitava tudo e até pensei que tudo seria possível. Ergui os braços para receber as farpas considerando-me um homem de valores, um homem redondo e livre. Vivia numa espécie de cápsula existencial que se por um lado aproximava gerações por outro se distanciava da essência que julgava possuir – da vontade de ser muito bom em qualquer coisa. Mas eu não, continuava perdido, refém de querer ser tudo, refém das intensidades. Pensava que poderia ser assim para sempre, mas estava enganado.
Dediquei mais que meia vida a construir… sabes… as coisas que a gente gosta – a procurar o que julgamos essencial e nunca se esgota nas palavras. A procurar toda a beleza do mundo no fundo dos olhares. Tu bem sabes que o grande fascínio do mundo está num rosto humano e por isso não parámos de olhar, sempre a olhar o fascínio intemporal de um rosto, a procurar um pensamento bom, limpo e directo.

Assim foi chegando ao princípio do mundo onde as nuvens eram habitadas por luzes fosforescentes, onde as casas estavam vazias e eu a olhar para ti. No princípio do mundo eu já tinha mais que meia vida e descobri finalmente a terra para cultivar. Descobri que na terra estava o todo que sempre procurei, descobri que as palavras tinham os seus limites bem traçados e que a grandeza estava naquilo que não se dizia. Que a grandeza era eu e tu a olhar o mundo com aquela força de corar, com aquela força terna de amar as coisas. Sabes… as coisas que a gente gosta, sem tempo, sem limites, só paixão absoluta e vontade de abraçar. Possuíamos o segredo dos seres lentos e espinhosos, dos seres difusos e íntimos como a terra, ora agreste, ora suave e aconchegante.

Texto publicado na revista "Pensares" - ESJAC

1 comentário:

Palhaço Voador disse...

ao mais alto nível.