14 maio 2007

Geometria da alma

















img aqui

Sempre me deixei fascinar pela falta de perpendicularidade, pelos planos inclinados, pelas rampas, pelos trapézios e por outros objectos que tendem a desafiar a gravidade ou, pelo menos, o nosso giroscópio natural que nos impele à verticalidade. Talvez por isso a Casa da Música, no Porto, seja o meu edifício fetiche, a minha casa. Visto do exterior ou a partir do interior tudo nele é um desafio, os seus labirintos, os espaços diferenciados, as transparências, a obliquidade, as surpresas permanentes. É igualmente um desafio porque inquieta os sentidos e provoca comprovadamente a reflexão. Quando lá entrei pela primeira vez pensei que nunca o iria descobrir na íntegra e ainda não desisti dessa convicção. Este edifício contém em si uma espécie de geometria da alma e corresponde a uma visão do mundo que, não sendo original, é aquela em que acredito e aqui venho defender convictamente, ou seja, olhar para as coisas sob um ponto de vista inclinado.

Aviso desde já os leitores que esta ideia de gostar de inclinações é uma qualidade que possuo e, não fazendo de mim nem melhor nem pior que ninguém, corresponde a uma visão do mundo que ao longo deste curto artigo fará de mim um homem de nobres virtudes, que em boa verdade e sem arrogância garanto possuir, mas que pode igualmente fazer de mim um alvo a abater.

A Inclinação

Observar o mundo sob um ponto de vista diferenciado, daqui para a frente e por força de uma certa visão, designado de inclinado, ajuda qualquer um a desenvolver o sentido da relatividade que é um primeiro passo para o desenvolvimento da criatividade e do sentido crítico sobre aquilo que apelidamos de real. Ver inclinado não é fácil, como não é fácil lutar contra uma multidão de pessoas verticais e sem capacidade de soltar uma grande gargalhada no momento mais sério. O povo diz e com razão que rir é o melhor remédio e eu passo a explicar porquê: quando rimos verdadeiramente contorcemos de tal forma o corpo que passamos a ver o mundo sob um ponto de vista inclinado, o que me vem dar razão nesta visão que aqui defendo.

Sabemos bem que é sempre a dificuldade em perspectivar, em relativizar, que conduz à generalidade dos conflitos humanos, daí que talvez possamos ter uma sociedade mais assertiva quando um maior número de pessoas for capaz de se inclinar. Claro que existem aqueles que por natureza se tornaram inclinados e para os quais meio mundo sempre olhou com alguma desconfiança, estou a pensar, por exemplo, nos artistas e nos cientistas visionários. Mas a inclinação não é necessariamente uma coisa inata ou propriedade de alguns, pois qualquer um que seja capaz de rir ou chorar pode sem dúvida alcançar esse estádio crítico (e inseguro) de ficar inclinado e assim contribuir para uma visão ampla e relativizada do mundo, contribuindo igualmente para a natural resolução salutar dos problemas mais comezinhos da vida de todos os dias e porque não dos grandes problemas que nos afectam a todos.

O Fanatismo

Segundo o galardoado escritor Israelita Amos Oz a essência do fanatismo (consequência inequívoca da falta de inclinação humana) reside no desejo de obrigar o outro a mudar, aliás ainda segundo o mesmo autor o fanático é um grande altruísta: “quer salvar a nossa alma, redimir-nos. Livrar-nos do pecado, do erro, do tabaco, da nossa fé ou da nossa carência de fé. Quer melhorar os nossos hábitos alimentares, ou curar-nos do alcoolismo”, enfim “o fanático morre de amores pelo outro”. Ora o nosso tempo está pleno de fanáticos encapotados que querem parecer verdadeiros democratas e defensores da liberdade, mas o que nós não vemos a maior parte das vezes é que a alma de muito desta boa gente congemina no mais profundo de si, na “gruta da alma” o maior dos fanatismos e a maior das desconfianças relativamente a tudo que foge da norma. É destas mentes invisíveis que devemos ter medo, muito medo, pois a invisibilidade, a par do fanatismo, é uma das maiores inimigas da inclinação. É na invisibilidade que se congeminam as mais audazes estratégias subversivas, as lavagens cerebrais mais profundas, é uma verdadeira força do mal, arvorada em princípios tão rígidos e conformistas que dão aos seus possuidores a capacidade de sentirem a mais inabalável das confianças e acreditar que a verdade é só uma, que o caminho está traçado e que tudo se concretizará se não fugirmos do trilho altruisticamente construído pelos sábios da invisibilidade que, qual Deus omnipotente e omnipresente, conduz o mundo a um porto seguro.

A Transparência

Contra a invisibilidade de que atrás falávamos, os seres inclinados contrapõem a transparência, os reflexos, as nuances, as imagens volúveis, as visões fractais, uma certa ideia de inacabado. Os seres inclinados ao contrário das forças da invisibilidade não têm nada a esconder, são naturalmente abertos ao mundo e acreditam que o conhecimento é maior quando abertamente partilhado. Os seres inclinados são verdadeiros adeptos das possibilidades comunicacionais da contemporaneidade e não têm medo da sociedade em rede, bem pelo contrário, vêm nela uma estrutura não hierarquizada e livre que corresponde àquilo que Manuel Castells chamou de “Glocal” - uma estrutura comunicacional que actua do global para o local e do local para o global, ou seja, um processo de conhecimento que por ora apenas exclui (e este é um dos grandes desafios do nosso tempo) aqueles que por várias razões não têm acesso à rede, mas que, por outro lado, permite àqueles que lhe têm acesso partilhar conhecimentos de forma até agora nunca vista.

Para terminar gostaria de deixar aqui uma mensagem de força a todos os inclinados do mundo ou aqueles que por qualquer razão se encontram próximos desta visão - riam, chorem muito, porque rir e chorar é uma forma pura e virtuosa de pensar o mundo.

1 comentário:

Palhaço Voador disse...

Caro Palhaço Inclinado:
ver esse ser inclinado que habita dentro de cada um ( a que eu chamo o nosso clown) é dificil para quem também é inclinado. Não reparo que o outro está inclinado, porque está igual a mim e nessa medida ele é normal, e a sua visão do mundo inclinada sintoniza-se com a minha de forma natural e suave. Às vezes o que é dificil para mim é perceber essas pessoas verticais, com essa tendência anormal para estarem todas aprumadas, e é estranho serem tantas e não compreenderem aquilo de que os inclinados falam ou vêm. Em todo o caso, parece-me que no limite não se escolhe ser vertical ou inclinado. Há uma febre que tende alguns para a inclinação, e um medo de cair que tenderá outros para a verticalidade. Uma espécie de missão que tem que se cumprir. Não faz de ninguém melhor ou pior. Mas estou seguro que a minha casa é a de gente inclinada.
Belo texto, um manifesto de um palhaço inclinado. Abraço.