Percorria a estrada alienado no vento e no percurso tantas vezes repetido, quando me dei conta de algumas coisas significantes, dos mitos que criamos em torno do que já está definitivamente impresso na alma e da construção que ao longo dos anos fazemos de nós mesmos. Não adianta querermos mais e diferente pois o nosso caminho tem padrões bem traçados que, ora nos iludem, ora nos atormentam e alienam. A construção do indivíduo é coisa própria do mistério de existir, sem dúvida, da fidelidade que temos ou não a nós mesmos, da autenticidade que procuramos nos dias. Olho para o todo e vejo uma nuvem bem definida de comportamentos e atitudes que indiciam que daqui para a frente não vai ser particularmente diferente. Que o que verdadeiramente nos fascina foge-nos todos os dias das mãos inábeis para agarrar tanta imensidão. Que o que vemos é tão só o que efectivamente vemos e o resto se esfuma nas sinapses da mente. Gostaríamos de dar algum sentido a isto tudo e dar o rumo necessário às inquietações, mas limitamo-nos a olhar de soslaio para a vida que nos passa ao lado ou para os comportamentos em exaustiva e enfadonha repetição. Gostaríamos de ter a solução para um corpo morto, uma solução para um comportamento desestruturado, para na realidade nos agarrarmos à infinita e suprema ordem, ao caminho seguro para algum lado, ao caminho fácil que é querer que todos gostem de nós, à falsa transparência de cumprir objectivos mais ou menos estabelecidos, mais ou menos consensuais. Talvez esteja inscrito nos genes que não vamos abandonar uma certa forma de existir, que para todos os efeitos é uma estratégia obsoleta.
Nada nos fascina mais e nos atormenta do que a morte, morte em estado brutalmente puro. Morto encostado ao leito frio do xisto e projectando a sombra como último impacto na natureza, aquela natureza que os vivos ainda entendem. Morto junto ao verde crescente de uma primavera febril e explosiva, ao esplendor do bacelo jovem. Dois ou três olhares bastam para compreender a beleza horrível da putrefacção, do corpo finalmente humilde e pungente na sua comunhão com tudo o que existe. São efectivamente os dias débeis de uma primavera esplendorosa, quando um corpo distraído se encontra no nosso olhar temeroso perante o que se adivinha cruel e verdadeiro. Quando o nosso olhar rarefeito e simultaneamente atento se fragiliza e refugia no turbilhão sempre inconclusivo do nada, do vazio absoluto e do silêncio das coisas sérias. Das coisas que nos impelem a ficar quietos, quando nós só queremos avançar deixando para trás a dor de nos sentirmos inconclusivos e sem respostas, sem chão e sem nada.
Nas últimas semanas andei por aí com a morte no caminho, a coisa estranhamente inquietante do corpo inanimado, morto, alvo. Do corpo matriz do existir e do deixar de ser. Do corpo abandonado aos elementos e à combustão que estes provocam. Do corpo que segrega sucos, do corpo que exala perfumes atribuíveis às coisas mortas, às coisas que não queremos olhar, que não queremos ver, quanto mais cheirar. Em volta dele, do morto, iludimo-nos de que compreendemos finalmente o significado da existência, o significado da vida e da sua verdadeira e curta dimensão, para logo nos redimirmos de tal conclusão e avançarmos vivendo exactamente da mesma forma, como se fossemos eternos.
Publicado na revista Pensar(es) - Junho de 2011